Uma
empresa modelo para o E-SOCIAL
ATENÇÃO: Este texto é uma ficção e qualquer semelhança com o mundo real, é mera coincidência...
Era uma manhã de segunda e Abdoraldo, auditor fiscal
do Ministério do Trabalho, chegou para finalizar o seu procedimento. Tudo
arrumadinho, bonitinho, sobre a mesa, esperando o tal “homi do fisco” para
conferir o que restava... Arquivos do
SEFIP já tinham sido analisados e as bases do CAGED também, juntamente com a
RAIS. Não demorou muito e Abdoraldo percebeu que se tratava de uma empresa
muito organizada.
O auditor feliz da vida, encerrou o procedimento
dando parabéns ao encarregado de DP, e foi recebido pelo Seu Odorico, o dono do
empreendimento que lhe deu um tapinha nas costas, ofereceu um cafezinho e fim
de papo...
Foi-se Abdoraldo e a gréia(1) tomou conta do espaço... O fiscal saiu
totalmente convencido de que aquela empresa é um “modelo” para o E-SOCIAL... Coitado do bichinho...
Zezinho Cabeção, o encarregado
de DP, recolheu todo o material, quando lhe perguntaram quando é que ia sair o
“faz-me rir”. Prestativo como sempre, disse, “depois que eu mandar a folha
oficial pro banco, vou liberar a PF pra Neuza pagar”...
Nesta empresa, a folha que
realmente vale é a chamada “PF”, que ganhou nomes carinhosos pela famosa “Rádio
Peão”: “O ajeitadinho tá chegando...”,
“Lá vem Dolores...” e coisas assim... É a folha que todo mundo espera, só em
“cash”.
Seu Odorico é abestado e faz
questão de dizer a todo mundo que “paga bem”... De fato, a folha PF é, no
mínimo, o dobro do valor da folha oficial, onde quase todo mundo é auxiliar de
alguma coisa, e as funções de chefe daquilo, chefe não sei de quê, cabem apenas
aos diretores não empregados, que recebem 1 salário mínimo de pró-labore.
E assim, a “Odorico Representações” vai levando... CND por lá é muito, muito fácil de se obter. Com a “folha baixa”, como Seu Odorico gosta de chamar, não é tão complicado manter os tributos em dia e uma estrutura de pessoal bastante “desenrolada” organizando todo o CAIXA DOIS e a contabilidade por dentro, que não passa de mera formalidade.
O contador, Dr. Orfeu, que
também é advogado, se reuniu com a diretoria para falar sobre o E-SOCIAL. Seu
Odorico ficou indiferente, pois pra ele, só vale mesmo a “contabilidade real”,
e pelo que ele entendeu, vai ficar até melhor com esse tal de E-SOCIAL, porque
o fiscal não precisará mais visitar a empresa e só sentirá falta mesmo do
“tapinha nas costas”, que faz todo mundo ficar com aquele riso safado... Já é
assim no Sped, e não somos mais importunados com os fiscais aqui; que venha logo
este E-SOCIAL, falou Odorico, orgulhoso em gerenciar dois mundos dentro de sua
empresa, o oficial e fictício, do Sped e o real, baseado na economia subterrânea.
A empresa do Seu Odorico está no
Lucro Real e entrega o Sped certinho e todas as demais obrigações em dia. É
realmente uma “empresa padrão” operando como uma representação e tudo fica bem
encaixado porque os representados também cooperam...
Terminada a reunião do E-SOCIAL,
Dr. Orfeu foi a empresa do Seu
Hernesto, que está numa situação muito difícil: Lá não existe esse negócio de
"Folha PF", "Nota Baixa", “faz-me rir”.... É tudo oficial...
Por dentro... A contabilidade demora mais para fechar e a empresa se encontra
constantemente em dificuldades de caixa. Resultado: Apelou para mais um REFIS e
sonha um dia em tirar uma CND sem todo o estresse que costuma passar.
Ao atender Seu Odorico e Seu
Hernesto no mesmo dia, Orfeu parou para pensar como as coisas no Brasil são
loucas e injustas demais: Uma empresa é
de um cliente sem vergonha, sonegador que tira CND tão facilmente quanto os 7 a
1 da Alemanha... O outro é um cliente que declara tudo ao fisco, e que está tão
devedor que pensa em encerrar as atividades.
O Brasil precisa se repensar em
termos de justiça fiscal, pensou Orfeu, em um momento mais filosófico, sentado
no sofá com sua caçula assistindo a “Alice no país das maravilhas”, quando viu
aquela menininha entrando naquele mundo paralelo e sendo recebida por dois
cabeçudos, se viu trabalhando na contabilidade da “Odorico Representações”; um
deve ser o Sped, e o outro, o eSocial, é tudo um tremendo faz de contas mesmo, concluiu.
Deu uma risada e pensou ser
assim mesmo a vida de contador trabalhando para quem sabe enganar muito bem o
fisco, enquanto vê gente boa se ferrando às custas dos Odoricos que brincam de
tirar CND e viajam para fazer compras em Miami. Hernesto é "mau pagador",
e Odorico, um "contribuinte exemplar", meu Deus, pensou.
E quando terminou o filme,
zapeando, parou em um daqueles canais pagos de jornalismo 24 horas, e estava um
especialista em Sped todo engomadinho, dizendo que o E-SOCIAL vai reduzir a
informalidade e combater os sonegadores. Pensou no Sped e então, a única coisa
que lhe passou na mente foi o tal mote que de vez em quando lhe dizem lá na
"Odorico Representações": SABE DE NADA, INOCENTE!
Vitória
de Santo Antão (PE), 11 de setembro de 2014.
Leonardo Amorim
(1) Expressão nordestina para gozação, palhaçada.