“... os que se tem por notório e incontestável excederem o nível da instrução ordinária, esses para nada servem. Por que? Porque “sabem demais”, sustenta-se ahi que a competência reside, justamente na incompetência. Vae-se, até, ao incrível de se inculcar o “mêdo aos preparados”, de havel-os como cidadãos perigosos...”

 

(Ruy Barbosa, trecho de Oração aos Moços*)

 

 

 

 

MÉRITO DA INCOMPETÊNCIA

TEM MUITA GENTE ASSUSTADA COM A DESONERAÇÃO DA FOLHA DE PAGAMENTO

 

 

Por Leonardo Amorim

 

 

Atualizado por Leonardo Amorim em 20/04/2013 11:02

 

 

Estava revirando alguns livros antigos, quando me deparei com este maravilhoso discurso de um dos maiores intelectuais da história, ao mesmo tempo em que pensava na próxima atualização do artigo Desoneração da Folha de Pagamento.

 

A desoneração da folha de pagamento está em vigor, cheia de remendos e trazendo muitos questionamentos. Venho acompanhando este assunto desde quando o então governo do presidente Lula o anunciou. Como toda jogada de marketeiro, o projeto ficou apenas no anúncio. Todavia, em agosto de 2011, já no governo Dilma Rousseff, foi publicada a MP 540 e logo percebi que o modelo proposto é mais um típico caso do “jeitinho brasileiro” de resolver as coisas. Assim penso, porque em vez de propor uma reforma ampla e profunda no sistema de contribuições previdenciárias, visando realmente reduzir a carga efetiva sobre a folha de pagamento, o governo federal resolveu atacar o problema com medidas provisórias pontuais.

 

Sabemos que a carga do INSS sobre a folha de pagamento é pesadíssima, e vem sendo mantida por décadas visando sustentar um sistema caro, ineficiente e, sobretudo, constantemente prejudicado pela corrupção.

 

Devemos ponderar que não é algo simples reduzir contribuições do setor produtivo ao INSS, por envolver a saúde financeira de uma instituição que atende aos interesses de milhões de brasileiros que precisam, ou um dia precisarão, da seguridade social. Discutir seriamente esse tema é um incômodo, principalmente para quem vive “deitado eternamente em berço esplêndido”. A máquina pública que gerencia a previdência social é lenta, arcaica, vulnerável às fraudes, corporativista e subserviente aos interesses da elite do serviço público.

 

Sem uma reflexão profunda do poder público junto à sociedade, é impossível pensar em uma seguridade social estável. Nesse ponto, o caminho de impor modificações complexas por medidas provisórias é um perigoso atalho, que assim se provou quando começou a tramitar no Congresso Nacional; a MP 540 rodou nas mãos dos parlamentares e voltou modificada; houve a conversão na Lei 12.546/2011. O impressionante é que os parlamentares conseguiram tornar o mecanismo de desoneração ainda mais complexo, porque passaram a tratar o tema de acordo com suas conveniências políticas.

 

Claro, não houve um debate sério sobre a qualidade do modelo proposto pelo governo federal; em Brasília, tirando as honrosas exceções, os congressistas normalmente estão mais preocupados com o “toma lá dá cá”, com o joguinho de troca de favores e os preenchimentos, nada éticos, de cargos nos primeiros escalões do governo. O Congresso Nacional é uma marionete nas mãos do Palácio do Planalto, que se acostumou a ditar as regras por um clientelismo institucional, hábito repugnante da política tupiniquim,  desde quando Cabral pôs os pés por aqui. Oposição no Brasil lembra mais a rainha da Inglaterra; uma mera formalidade decorativa. Então, não chega a ser surpreendente, ver que o modelo de desoneração aplicado pela MP 540 não foi questionado, mas simplesmente aceito e incrementado com os pedidos pontuais de alguns parlamentares ligados a certos mega empresários.

 

Por que o modelo é inadequado?

 

Primeiro, porque não envolve um tratamento específico, escalonado e simplificado aos segmentos essenciais que tornam uma economia forte, pelo contrário, impõe uma regra de contribuição linear partindo de uma cadeia de produção até o consumo, por uma complexa segregação de receitas por itens da TIPI (indústria) ou CNAE (comércio e serviços), para em seguida substituir a contribuição de 20% sobre a folha de pagamento, sem um critério específico de desoneração para cada setor. As realidades da indústria de bens de capital, da industria de bens de consumo, dos segmentos de matéria-prima, devem ser ponderadas na formulação de um modelo de contribuição que os tornem mais competitivos se comparado ao anterior (Lei 8.212/1991), algo não constatado no que está sendo imposto pelo governo, se considerarmos que não haverá impactos com reduções significativas, em várias situações. Resumindo: cada setor da economia tem suas particularidades que devem ser consideradas na elaboração de um modelo de contribuição previdenciária, visando equacionar a necessidade de tornar os segmentos mais competitivos com a redução da carga efetiva e garantir o aporte de recursos à seguridade social, o que nos remete a uma questão mais sócio-econômica.

 

Em segundo lugar, como já não bastasse a dificuldade para compreende-lo e cumpri-lo, o modelo de substituição pode até mesmo aumentar a contribuição efetiva, além do aumento de custos a torna-lo prático perante suas normas, custos estes que, evidentemente, são arcados pelos contribuintes, ou seja, o modelo aumenta o tempo dedicado para o cumprimento de obrigações fiscais acessórias, principalmente nos casos de concomitância de itens e atividades atingidas e não atingidas pela desoneração, e pelas repercussões nos ajustes que devem ser feitos na GFIP, na DCTF e na EFD-Contribuições; três obrigações acessórias que envolvem a questão, que poderiam ser resumidas em uma GFIP reformada para atender às demandas de informações da Receita Federal e do INSS.

 

Terceiro ponto: as sucessivas medidas provisórias adicionando, em doses homeopáticas, itens pelo NCM ou pelo CNAE, tornou o modelo mais parecido com uma “colcha de retalhos”; uma teia de normas desconexas, com períodos de vigência diversos, e exceções meticulosas, que obrigam muitos especialistas e dedicarem tempo exaustivo de estudos para se atualizarem com a intensidade de medidas provisórias. O governo precisa entender que uma redução de carga contributiva tem que vir acompanhada de um modelo de regras consolidadas cuja compreensão seja relativamente fácil aos olhos dos contribuintes, e não somente dos especialistas e burocratas. Desde agosto de 2011, são cinco medidas provisórias, três leis, dois decretos, diversos atos declaratórios, e várias soluções de consulta, o que tem impressionado e amedrontado quem somente agora resolveu se aprofundar na questão, para a alegria das empresas que estão faturando alto no setor de consultoria, com cursos e palestras; o governo está criando um monstro para os especialistas domesticarem. Mesmo tendo um prazo de validade, sendo assim aparentemente provisório (não se sabe ao certo as pretensões do atual governo), não se justifica algo tão retalhado, mesmo que sob o título de experiência, exigindo muito esforço dos contribuintes para aplica-lo, pois, convenhamos, a sociedade da iniciativa privada tem muito mais o que fazer, se comparada ao estilo de vida que se leva em Brasília.

 

Quarto ponto: o modelo reduz contribuições patronais ao INSS, mas ao mesmo tempo, não trabalha com uma política rígida de redução dos custos da máquina estatal previdenciária que gerencia o sistema; sem a contra-partida da redução de custos, incluindo também nessa questão um ostensivo combate às fraudes, o governo tem apelado para os repasses da União ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social – FRGPS, o que é um perigoso caminho que pode desembocar em problemas fiscais.

 

Não tendo a devida coragem de enfrentar realmente o problema, o governo Dilma Rousseff decidiu impor uma série de normas superficiais e fatiadas, produzindo mais complexidade aos contribuintes, brincando de produzir medidas provisórias com a velha e perigosa “canetada”, para em seguida, explorar politicamente a situação, afirmando a sociedade que reduziu a carga de contribuições sobre a folha de pagamento, deixando a entender que está fazendo a sua parte, tudo isso amparado por um modelo esquizofrênico que atesta mais a incompetência de quem o produziu, principalmente do ministro da fazenda (penso que The Economist está mesmo com razão, ao propor sua demissão).

 

Este modelo foi pensado por indivíduos sem a suficiente vivência do tema; burocratas que atuam em um mundo paralelo ao nosso. Um modelo com chances reais de ser uma reforma eficiente e eficaz para sustentar o INSS e dar seguridade social às próximas gerações, precisa ser debatido com a participação de entidades do porte do Conselho Federal de Contabilidade, economistas e advogados tributaristas, administradores de grandes empresas, com as entidades ligadas às industrias, o Comitê Gestor do Simples Nacional, a Receita Federal, o INSS, o SEBRAE, e diversos órgãos dedicados aos estudos previdenciários, muitos assessorados por grandes acadêmicos, enfim, temos uma gama de entidades que podem contribuir enormemente e com muito mais profundidade que os parlamentares e o governo federal.

 

É constrangedor ver que a provocação de Ruy Barbosa seja tão atual; infelizmente, a nossa cultura é muito passiva e aceita tranqüilamente que a competência resida, justamente na incompetência, em um país onde os conhecimentos dos especialistas não são considerados nos debates das questões técnicas e de grande interesse nacional. Enquanto forem eleitos os “tiriricas” da vida, teremos essas reformas “inteligentes” empurradas por um governo repleto de “competentes” burocratas lunáticos, com o apoio promíscuo de um congresso incapaz de ser crítico e construtivo.

 

 

 

LLConsulte Soli Deo gloria

 

 

*Oração aos Moços foi o título posteriormente dado ao discurso de Ruy Barbosa proferido aos bacharelandos da Faculdade de Direito de São Paulo, em 1920. O português representa a linguagem culta do início do século XX.